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Fusionamento Afetivo – Um Mar de Prazeres?

Nós não existe, mas é composto de Eu e Tu; é uma fronteira sempre móvel onde duas pessoas se encontram. E quando há encontro, então eu me transformo e você também se transforma.”

Fritz Perls – Gestalt Terapia Explicada

Nós, parece ser uma espécie de fantasia que atravessa o imaginário quando adentramos no campo das relações afetivas. Quem já passou por um apaixonamento talvez tenha experimentado na pele das emoções essa sensação de mistura com uma outra pessoa. Em geral, quando nos apaixonamos, a experiência de contato vem acompanhada de percepções e sentimentos bem peculiares, como a sensação de perda das fronteiras e contornos do Eu. Desse intenso contato, emerge uma espécie de fusionamento que faz com que percamos a noção de onde Eu começo e o Outro termina, o que por sua vez desperta sensações psíquicas, emocionais e corporais que oscilam entre intensos prazeres e intensas angústias.

Podemos especular que os intensos prazeres que emergem desse fusionamento nos levem a vivenciar memórias corporais-afetivas de quando éramos ainda bebês, desprovidos de um senso de “Eu-individual”, envoltos no aconchego do corpo materno, alienados dos contornos e fronteiras que dividiam o Eu (o bebê) do Não-Eu (a mãe). 

“Sinto fome, um seio misterioso chega ao encontro da minha boca; este seio sou eu! Meus instintos me fazem succionar o leite morno para dentro de mim… é um êxtase! Este seio, colo, leite, calor fazem-me sentir seguro, acolhido, protegido, saciado em meus desejos e necessidades. Assim, fusionado e este Não-Eu, haveria algo a temer? Haveria alguma necessidade não suprida? Me sinto completo, é um prazer inenarrável! Não há a menor falta ou possibilidade de solidão.”

Fatidicamente, esse bebê cresce e começa a se tornar pessoa, o que só se faz possível a partir de experiências de disfusionamento, decorrentes da percepção de seus próprios contornos e fronteiras, afirmadas a partir da separação e da negação do Outro, da percepção dos contornos próprios do Eu em contraste com o Não-Eu. 

“Ah! Que angústia intensa é essa que me atravessa corpo e alma? Sinto como se uma parte de mim estivesse sendo amputada! É horrível sentir isso, me percebo vulnerável, desprotegido, abandonado, incompleto, faltante, à deriva no mundo… preciso retornar agora mesmo para aquele lugar; quero o calor daquele colo… será que posso nutrir a mim mesma sem meu-Eu-seio? Mas péra aí! Tenho tido vontade de experimentar outros sabores que não o do leite. Outro dia senti uma brisa fresca me tocando e notei que eu tinha pele… ela me contorna… foi tão bom sentir aquilo. Também aconteceu de eu passar numa loja onde provei um novo perfume… por mais que aquele cheirinho que passavam em mim fosse gostoso, tenho a impressão que agora gosto mais desse cheiro que provei sozinho. Será que é seguro escolher algo para mim, ou por mim mesmo? Desejo muito testar essa possibilidade, mas é uma ambivalência tão profunda, sinto imensa angústia em me tornar Eu… ao mesmo tempo que sinto esse prazer delicioso em descobrir meus próprios contornos.”

Relações afetivas nos transportam para estas ambivalências que busquei ilustrar nos parágrafos acima, e onde há ambivalência, há também angústia, sendo esta, via de regra, a resultante do conflito entre forças psíquicas que são sentidas como antagônicas, como por exemplo, desejar muito por algo e, ao mesmo tempo, esbarrar com algum tabu moral que se oponha a esse desejo.

Ao experimentar um apaixonamento, seja entre amantes, uma nova amizade, ou mesmo por um grupo (religioso, ideológico, acadêmico, etc), é comum que percamos temporariamente a percepção dos contornos e fronteiras que distinguem nosso Eu do Outro, passando a sentirmo-nos como um “nós”. Em um primeiro momento, desfrutamos dos prazeres e deleites intrínsecos àquelas sensações corpóreo-afetivas primárias, que outrora nos fizeram sentir seguros, acolhidos, nutridos, onipotentes… trata-se de uma fantasia regressiva na qual abdicamos do Eu a fim de desfrutarmos das sensações reconfortantes advindas do fusionamento com o Outro – parece haver um certo alívio em não ser Eu! No entanto, o processo natural é o de que surja uma demanda interna para a reconfiguração de nossos próprios contornos, o que se dá a partir da afirmação do Eu em contraste com o Não-Eu. 

Quando este disfusionamento acontece de forma saudável, sentimo-nos “repatriados” e mais capazes de exercer uma certa maturidade emocional, que implica na autonomia do Eu perante o Outro, tão como diante das situações cotidianas da vida. Percebemo-nos mais capazes de bancar nossos próprios desejos e escolhas, de produzir criativamente estratégias que visem suprir nossas necessidades pessoais. Com contornos bem delineados, se torna possível ao Eu fazer contato com o Outro de forma que os contornos e fronteiras de ambos sejam respeitados, preservados e não invadidos, invalidados ou violados. Tais conquistas nos conferem a habilidade de apreciar as diferenças inerentes ao Outro e com elas conviver sem a necessidade de “se converter” aos desejos e necessidades deste Outro, por conta de medos e inseguranças provenientes das angústias primárias do abandono e da solidão. 

Ao peregrinar pela vida, será impossível não correr o risco de se apaixonar e, portanto, perder temporariamente os próprios contornos e fronteiras, embrenhando-se assim em recorrentes experiências de fusionamento do Eu no Outro. Ser humano é assim mesmo! Podemos nos lembrar, no entanto,  que na etimologia da palavra paixão (do grego “pathos”), encontramos a palavra “patologia”. Ao abrir mão dos próprios contornos – conquistados a duras custas, diga-se de passagem! – entramos em um estado de adoecimento do ser, que implica em uma regressão psico-emocional a estados infantilizados de perda da autonomia corporal, psicológica e de profunda dependência afetiva. Passamos a sentir dificuldade de agir no mundo sem a presença ou aprovação do Outro, tememos mortalmente passar mais uma vez pelo disfusionamento, pelo abandono.  

Encontrar recursos para refazer as próprias fronteiras e contornos é o único antídoto possível à restauração da própria saúde mental e corporal, como também para pavimentar a construção de relacionamentos mais saudáveis e maduros, pautados pela capacidade de caminhar lado a lado, sem tantas misturas, dependências e fusionamentos. Isso é uma possibilidade! Todavia demanda esforço, dedicação para conquistar um bom nível de autoconhecimento e muitíssima bondade amorosa para consigo mesmo.

“Texto dedicado à amada companheira de jornada, Kelly de Abreu Prior, grande alma gestaltista, que me ofereceu generosamente a palavra-chave desta escrita: o fusionamento.”

Autor: Rogério Meggiolaro Gouveia Soares.
B.a. em psicologia, psicanalista, com uma jornada de amor pela gestalt-terapia. Instrutor de yoga e meditação. Fundador do Instituto Sada Shiva e do Núcleo Autopoiesis

 

2 comentários em “Fusionamento Afetivo – Um Mar de Prazeres?”

    1. Se há uma conquista, há também a possibilidade de novas perdas, e reconquistas… Só termina qdo acaba. É esse jogo de acha e perde que torna a vida interessante. ❤️ Grato por ler, Beth!

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